Somos todos autistas de nossa própria luta

A sensação é de estar dentro de um corpo que não se pode controlar. É isso que, segundo Carly Fleischmann, o autismo provoca. Ela resolveu contar ao mundo o que se passa na mente de quem sofre deste distúrbio tão envolto em preconceitos e tabus e tão temido, podendo mostrá-lo de uma forma afetiva e real, desmistificando crenças estereotipadas a respeito.

Durante os primeiros 11 anos de sua vida, Carly vivia grande parte do tempo imersa em seu universo particular. O diagnóstico de autismo foi confirmado quando tinha 2 anos de idade. Os médicos explicavam que a impossibilitaria de se comunicar e de ter uma vida normal, além de dizer para os pais que ela tinha um atraso mental que a permitiria chegar somente ao desenvolvimento de uma criança de 6 anos.
Eis que emerge o que podemos chamar da salvação de Carly: o olhar parental. Seu pai sempre soube que ela estava ali, perdida atrás daqueles olhos. E talvez perceber essa crença que seu pai tinha nela foi o que a fez sentar-se no computador e digitar letras que formavam a palavra HURT (dor, em inglês), seguida de HELP (socorro, em inglês). Ela nunca tinha escrito nada antes. E agora estava ali, pedindo socorro, pedindo que alguém tentasse traduzir que sensação era aquela que sentia. Os pais de Carly então a incentivaram a se comunicar novamente. Se ela quisesse algo, teria que digitar o pedido. Alguns meses se passaram até que ela compreendesse isso.
A Associação Americana de Autismo o define como uma inadequação no desenvolvimento que se manifesta de maneira grave por toda a vida. É incapacitante e aparece tipicamente nos três primeiros anos de vida. Acomete cerca de 20 entre cada 10 mil nascidos e é quatro vezes mais comum no sexo masculino do que no feminino. É encontrado em todo o mundo e em famílias de qualquer configuração racial, étnica e social. Não se conseguiu até agora provar qualquer causa psicológica no meio ambiente dessas crianças que possa causar a doença. De acordo com o manual deClassificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde– CID-10, da Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica o autismo como um Transtorno global do desenvolvimento caracterizado por:
  1. um desenvolvimento anormal ou alterado, manifestado antes da idade de três anos
  2. presença de uma perturbação característica do funcionamento em cada um dos três domínios seguintes: interação social, comunicação, comportamento focalizado e repetitivo
O transtorno se acompanha comumente de numerosas outras manifestações inespecíficas, por exemplo, fobias, perturbações de sono ou da alimentação, crises de birra ou agressividade. (Maiores informações no site: aqui)
Quando Carly chegou aos terapeutas, ansiosos por avaliar aquele comportamento raro, as primeiras coisas que digitou foi: “Eu tenho autismo, mas isso não é quem sou. Gaste um tempo para me conhecer antes de me julgar.”.
A partir daí, Carly começou a fazer algo inédito: revelar as explicações por trás de seu universo único. Ela começou então a explicar mistérios por trás do seu comportamento de balançar os braços violentamente, de bater a cabeça nas coisas ou de querer arrancar as roupas: “Se eu não fizer isso, parece que meu corpo vai explodir. Se eu pudesse parar eu pararia, mas não tem como desligar. Eu sei o que é certo e errado, mas é como se eu estivesse travando uma luta contra o meu cérebro.”
Tal capacidade não deve ser algo exclusivo de Carly. Certamente várias outras crianças acometidas por diversos tipos de transtorno do desenvolvimento poderiam ter a mesma sensibilidade. A questão é oferecer espaço para isso, para a criança perceber-se envolta em uma atmosfera de paciência e compreensão.
Eis algumas outras revelações sobre o universo autista feitas sobre Carly:
 A sensação que a obriga a agitar os braços freneticamente é de formigamento ou do braço pegando fogo”
Ela às vezes tapa os ouvidos e olhos para bloquear a entrada de informações em seu cérebro. É como se ela não tivesse controle e tivesse que bloquear o exterior para não ficar sobrecarregada”
Ela diz que é muito difícil olhar para o rosto de uma pessoa. É como se tirasse milhares de fotos ao mesmo tempo, é informação demais para processar”
Todas essas dificuldades que ela apresenta parecem tão fáceis de realizar em nosso dia a dia, não é? Porém elas realmente não são. Menosprezamos a força mental que precisamos ter para manter o foco em determinada atividade entre tantas que a vida nos exige, a quantidade de informações diárias que o mundo nos envia e que consideramos tão óbvio. Devíamos perceber mais o quanto somos fortes e mentalmente resistentes, e o quanto, para quem apresenta algum tipo de transtorno mental, essas dificuldades se tornam quase intransponíveis. Porém, infelizmente ainda enxergamos o diferente com medo, com indiferença e com preconceito, como é possível perceber no incrível vídeo que Carly produziu (segue abaixo), que nos coloca dentro dos olhos de quem sofre disso, como se sente, o quanto o olhar externo traz julgamento e até mesmo reprovação.
Carly tem muito a nos ensinar, se estivermos dispostos a abandonar nosso olhar e aprender outro, talvez com menos habilidades cognitivas, mas certamente com outras habilidades emocionais que podem estar nos escapando em nossas vidas. Talvez isso possa ser resumido nessa última resposta de Carly à seguinte pergunta: Você pode descrever como se sente por dentro? Você acha que é diferente de crianças que não têm autismo? “O problema é que eu não sei o que as outras crianças sem autismo estão sentindo. Eu tenho lutas comigo todos os dias, desde que acordo até a hora de ir dormir. Não posso nem ir ao banheiro sem dizer a mim mesma para não pegar o sabonete e cheirá-lo ou sem lutar comigo mesma para não esvaziar todos os frascos de xampu”
Que possamos aprender com Carly a enxergar nossos pequenos atos diários como lutas, e então perceber o quanto somos vitoriosos e nem sequer sabemos.
Mais informações aqui.
Texto retirado do site Literatortura